Causos / Êta caboclo miserável
Lá em São Joaquim da Barra (lá venho eu com minha terra de novo), tinha o Abílio Estori. Muitos inventaram causos da miserabilidade dele. Quando a gente fala em miserável, é aquele camarada que não rói a unha porque dói. É aquele que, de graça, não dá nem bom dia...etc. e tal.
Sobre o tal Abílio, chegaram a contar dele uma escabrosa. Imaginem os senhores que contam por lá que, um certo dia, o nosso personagem estava com dor de cabeça. Naquela época, era comum tomar o famoso Melhoral para qualquer dor.
Então, isso posto, conta-se que o Abílio, estando com dor de cabeça, teria amarrado na ponta de uma linha bem fina de costura um comprimido de Melhoral. E tomado o comprimido em seguida com um gole de água. Assim que a dor de cabeça passou, o Abílio teria puxado pra fora o Melhoral, para guardá-lo para outra ocasião. Outra dor. Era muito econômico o nosso querido Abílio.
Outra atribuída a ele era nos tempos da bicicleta motorizada. Aquelas que tinham um motorzinho no cano central. Pois bem. Contam que ele descia a rua principal que era um pouco declinada, com o motorzinho ligado, fazendo aquele barulhinho característico de motor...brrr....brrrrrrr...De vez em quando (dizem), o Abílio desligava o tal motorzinho e substituía o seu barulho característico por um ruído igual, só que feito pelos lábios, pela boca... brrrrr... brrrrr...Era muito econômico o nosso Abílio.
Agora, pra encurtar nossos causos, aqui vai uma do saudoso Pedro Chediac, que dizem era muito miserável também. No bom sentido da nossa lembrança querida desse personagem histórico da minha terra.
Pois bem. Lá vem o sêo Pedro numa caminhonete na estrada. Ao ver um caboclo na bêra do caminho, como quem pede carona, este sêo Pedro toma a iniciativa de parar o veículo e oferecer (vejam só) a tal carona.
PEDRO – Pra onde o senhor está indo, amigo?
CABOCLO – Pra fazenda do Lageado, moço.
PEDRO – Entre aqui, que eu lhe levo até o seu destino.
CABOCLO – Obrigado, cidadão... Muito obrigado pela gentileza.
O caboclo subiu na caminhonete. Prosa vai, prosa vem, que lá na minha terra se gosta muito de prosear, o sêo Pedro de repente diz ao caboclo:
PEDRO – O senhor por acaso já me conhecia?
CABOCLO – Só de vista, moço.
PEDRO – Pois eu me apresento. Sou muito conhecido por essas bandas. Meu nome é Pedro Chediac.
O caboclo faz um ar de quem já ouviu falar do sêo Pedro Chediac.
PEDRO – Pois então. Veja o senhor que, na minha cidade, dizem que sou muito miseráve. Mas é intriga. Pois eu mesmo não lhe ofereci carona, agora mesmo? Intão. Eu não sou miseráve nada. Eu sou muito bom. Veja bem: sou uma pessoa tão dadivosa...portanto, não sou miseráve, que isso fosse verdade.... eu quero que, por um castigo, uma jamanta dessas bem grandes e pesadas passe por cima de nóis dois, agora mesmo. Neste instante.
CABOCLO (no ato) – Ô moço! O sinhô qué fazê o favô de encostá a sua caminhonete... Eu quero apeá... agora mesmo. Bem depressa!!!
==============================================================================por Rolando Boldrin
Causos / Dito Preto e o guarda
Quem nunca ouviu falar do Dito Preto lá da minha terra deveras não sabe nada de mim. Pois até hoje não me apareceu amigo melhor – e ele infelizmente partiu fora do combinado, que é como eu costumo dizer. Falo sobre este personagem real que marcou muito a minha vida porque vou contar uma das suas.
O Dito tinha comprado um caminhãozinho ano 1928, Chevrolet, que era apelidado de “cabeça-de-cavalo”. O dito cujo, calhambeque, não tinha mais onde estar estragado. Sem pára-choque dianteiro ou traseiro, sem portas, carroceria podre, toda torta, pintura enferrujada que não dava nem pra ver a cor do bicho. Enfim, era aquele despropósito de viatura.
Mas, como o motor estava retificado, e esses motorzinhos vão longe até não sei quando, para o que ele queria de sua serventia tava pra lá de bom. Era só para o trabalho de puxar cana nas fazendas da redondezas, e isso ele agüentava bem.
Aos sábados, que era dia de folga do Dito – e é num desses dias em que se passa o nosso causo -, o Dito como sempre toma o rumo da Via Anhanguera, que leva até o rio Sapucaí, que está bem pertinho da nossa terrinha, que é São Joaquim da Barra, que foi onde eu e o Dito nascemos já faz um tempão.
Pois bem: ao pegar a referida estrada, num trecho onde estava sendo inaugurada uma melhoria no asfalto, eis que aparece, para surpresa do Dito, um enorme guarda rodoviário, fazendo sinal para ele, o Dito, encostar.
Dito foi com seu caminhãozinho para a direita da estrada e, lá embaixo, depois de rodar uns 100 metros, foi que parou com tudo. Não se ouvia mais nem o ronco do motor do calhambeque, que era aquela coisa sem definição, de tanto se misturar com o barulho de lata velha e carroceria podre. O diálogo que se seguiu entre ele e guarda, depois de o mesmo ter andado muito pra chegar até o lugar, foi assim:
GUARDA – Boa tarde (eram 6 da tarde, que é hora de pescaria).
DITO – Boa tarde, sim sinhô.
GUARDA – Vamos ver se está tudo em ordem?
DITO – Vamo sim, sinhô. Tô aqui pra colaborá com a polícia.
GUARDA – A carta?
DITO – Que carta, sêo guarda?
GUARDA – A carta de motorista, ué. Que carta poderia ser?
DITO – Ahn... essa, num tenho não. Num deu tempo d´eu cumprá a carta ainda.
GUARDA – Documento do carro?
DITO – Que documento?
GUARDA – Documento de propriedade do carro. Documento que prova que o carro é seu.
DITO (ofendido) – Pelo amor de Deus! O carro é meu. Comprei ele à prestação do Coroné Lindário. Pode perguntá lá em São Joaquim. Todo mundo me cunhece.
GUARDA ( já meio impaciente) – Mas o senhor tem que ter esse documento, meu amigo. Quer dizer que não tem?
DITO – Não sinhô. Esse documento, também num tenho não. Mas assim que eu pudé eu compro ele também...
GUARDA (indo à frente do caminhãozinho) – Ascenda os faróis.
DITO – O sinhô vá descurpá. O faró da esquerda tá queimado. E o da direita tá sem luz.
GUARDA – O senhor não tem nem pára-choque! É o que estou vendo.
DITO – Não, sinhô. Onde eu trabaio num pricisa. Num tem choque cum nada. É nas fazenda, puxando cana.
GUARDA – Buzina? O senhor tem?
DITO – Não, sinhô . num tenho também não. Num vô mentí pro sinhô. O sinhô acha que eu vô gastá dinhero cum supérfuo?
GUARDA (já meio irritado com tudo) – Eu espero que, pelo menos, breque o senhor tenha.
DITO – Se eu tivesse breque tinha parado lá atrás, quando o sinhô mandô!
GUARDA (já puto) – Não tem breque também, não é?
Pois bem: o senhor não tem carta, não tem documento, não tem farol, não tem buzina, não tem breque... Olha, meu amigo, se eu for multar o senhor, nem vendendo este caminhão vai dar pra pagar tanta multa. Onde o senhor está indo agora?
DITO (calmo) – Tô indo pescá uns peixinho no Sapucaí, que fica logo ali, ó.
GUARDA (puto, mas muito compreensivo) – Vamos fazer uma coisa. Faz de conta que eu não vi o senhor. Pode ir embora com o seu “veículo”.
DITO (calmamente, do seu jeito gaiato) – Então, sêo guarda, me faz um favô. Dá uma impurradinha no bicho que eu tô sem bateria tomém...
Contava o Dito que o guarda, numa boa, empurrou sozinho o tal “cabeça-de-cavalo” Chevrolet.
por Rolando Boldrin
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